Os tratamentos de saúde à base de cannabis medicinal e sua eficácia vêm sendo cada vez mais reconhecidos. Na última semana, a Justiça do Rio de Janeiro concedeu a uma mulher um habeas corpus preventivo que a permite cultivar cannabis sativa para extração de óleo, além de autorização para importação de sementes, para tratar pitiríase liquenóide crônica, transtorno de ansiedade generalizada, inapetência, dores crônicas e insônia.
Já nesta semana, em Alagoas, foi aprovada em 1ª votação pela Assembleia Legislativa do Estado, Projeto de Lei que autoriza o uso da cannabis medicinal em território alagoano. O PL ainda precisa ser apreciado em 2ª votação pelos deputados estaduais e, caso aprovado, encaminhado para sanção ou veto do governador.
Quem faz uso da cannabis medicinal para tratar os mais variados problemas de saúde relata a transformação na qualidade de vida. Quem acompanha a evolução no quadro de algum familiar, também, como é o caso de Diego Peloso, que mora em Santa Catarina. Uma das maiores emoções da vida de quem tem um filho é ouvir a criança proferir as primeiras palavras. Mas com 1 ano e sete meses, o filho de Diego, o pequeno Jimmy, hoje com 5 anos, foi diagnosticado com autismo não verbal e, em função disso, a comunicação se dava apenas por gestos. Até que, dois anos atrás, a criança iniciou tratamento com cannabis medicinal e, desde então, “vive cantando”, relata o pai.
“Dezoito dias depois de usar o óleo de cannabis, não é que ele começou a aprender a falar, ele começou a falar. Isso é uma grande vitória que comemoramos até hoje, a cada vez que ouvimos a voz doce dele”, fala Diego, com brilho nos olhos. “Ele passou a ser outra criança, muito mais acessível e muito mais tranquila, porque hoje ele é compreendido”, completa, acrescentando ainda que, após ser tratado com a terapêutica, também teve melhoras na qualidade do sono e no foco nas atividades escolares e de lazer.
Outra paciente que viu sua vida transformada pela cannabis medicinal é Naylé Villela Leite, 61 anos, do Rio de Janeiro, que chegou a tomar 11 medicamentos ao mesmo tempo, na tentativa de controlar a dor provocada pela enxaqueca. Nos últimos 18 meses, as crises se intensificaram e inúmeros tipos de tratamentos foram tentados. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa é a sexta doença mais incapacitante do mundo, caracterizada por uma dor de cabeça unilateral, pulsátil e com intensidade moderada a grave, que tende a piorar ao longo das atividades rotineiras.
Com recomendação médica, fundada em pesquisas científicas, Naylé iniciou tratamento com cannabis medicinal e conta que o resultado foi transformador. “A canabis medicinal mudou a minha vida. Me permitiu retirar grande parte dos medicamentos que eu estava tomando e ainda estou em retirada progressiva de alguns. Foi uma renovação”, ressalta.
O autismo e a enxaqueca são duas das muitas condições médicas que podem ser tratadas ou aliviadas com o uso de produtos à base de cannabis. De acordo com estimativas da Kaya Mind (empresa de inteligência de mercado para o setor), são enfermidades que acometem até 18,6 milhões de brasileiros, mas hoje, aproximadamente, apenas 50 mil pessoas conseguem realizar um tratamento à base da planta em território nacional.
A falta de esclarecimentos e de posicionamento de representantes da classe médica, como o Conselho Federal de Medicina, travam os avanços para que mais pessoas sejam tratadas. Para fazer enfrentamento a essas barreiras, uma petição, criada pelo médico psiquiatra Wilson da Silva Lessa Júnior, coleta assinaturas para a abertura de consulta pública federal, que inclua toda a sociedade, além de audiências públicas regionalizadas em cada CRM (Conselho Regional de Medicina) para discutir com os pacientes, familiares, médicos, profissionais de saúde e demais interessados. A assinatura pode ser feita por qualquer pessoa, no link https://www.change.org/p/uso-medicinal-da-cannabis-uma-demanda-da-sociedade-civil?redirect=false.
O documento do abaixo-assinado ressalta que “pacientes, familiares, médicos e profissionais de saúde, que integram equipes multidisciplinares, buscam um posicionamento técnico atual e congruente do CFM na discussão acerca do uso medicinal da cannabis na prática médica ou uma manifestação oficial que afaste a oposição do Conselho à livre prescrição em respeito à Lei do Ato Médico”.
Enquanto não há esse posicionamento contundente, informações equivocadas são disseminadas, como as que constam em cartilha lançada recentemente pelo Ministério da Cidadania, elaborado pela Senapred (Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas) em parceria com os ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da Infraestrutura, e da Justiça e Segurança Pública. O conteúdo diz que “o uso terapêutico dos componentes da maconha ainda é extremamente restrito, contando com pouquíssimas evidências científicas” e que o “Conselho Federal de Medicina deixa claro a escassez de estudos que sustentam o uso terapêutico do canabidiol”, baseado em uma Resolução de 2014 e que, somente agora, passará por revisão.
“Nos últimos oito anos, diversos avanços científicos e regulatórios referentes a esse tema aconteceram no Brasil e no mundo. Somente na base de dados da PubMed (ferramenta de busca de informações científicas), há mais de 28 mil pesquisas científicas sobre sistema endocanabinoide e o potencial terapêutico dos elementos químicos da cannabis”, pontua a neurocirurgiã Patrícia Montagner, fundadora da WeCann Academy, única instituição da América Latina que oferece cursos exclusivamente para médicos, voltados ao Sistema Endocanabinoide. A especialista, que é uma das principais pesquisadoras da área no país, atende mais de mil pacientes com a terapêutica.
Ciência e classe médica no combate à desinformação
Dra. Patrícia lembra que o potencial terapêutico da cannabis vai muito além do canabidiol. “Diversos estudos metodologicamente qualificados estão disponíveis para provar a segurança e eficácia do potencial terapêutico do fitocanabinoide Tetrahidrocanabinol. Não à toa, um medicamento chamado nabiximols, composto de THC e CBD foi registrado em mais de 40 órgãos regulatórios no mundo, incluindo Brasil, para tratamento da dor associada à espasticidade da esclerose múltipla. Já existem 21 produtos à base de cannabis registrados no país pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), incluindo formulações de extratos da planta completa, deixando claro o potencial terapêutico da planta para muito além do CBD”, explica.
A neurocirurgiã lembra que a falta de informação gera questões equivocadas, deixando desprotegidos milhares de pacientes portadores de patologias graves, refratárias e incapacitantes. “O uso medicinal da cannabis é uma demanda da sociedade civil, reforçada pela petição do Dr. Lessa e é preciso orientar a comunidade médica de forma técnica, qualificada e sem ideologias, para que possamos cumprir o nosso supremo papel de orientar e proteger os pacientes. Todo e qualquer médico deve ter um conhecimento mínimo na área para orientar pacientes e combater a perpetuação de estigmas equivocados na sociedade e as anomalias profissionais que estão surgindo por conta disso”, conclui.