Dona Dedé, 91 anos, e seu Dudé. 97.
Este trabalho tem como tema geral a memória social do cangaço na década de 1930. Seus objetivos são estudar a memória do cangaço no povoado do Maracujá, buscando compreender a sociedade que esses indivíduos estavam inseridos na década de 1930.
A metodologia utilizada se baseia nas entrevistas feitas com idosos que conviveram na infância e na adolescência com o fenômeno, bem como os exemplares do jornal O Lidador que circulou na cidade de Jacobina, entre as décadas de 1930 e 1940.
Todas as fontes dialogaram com produções historiográficas que puderam embasar as discussões a respeito do fenômeno e de outros aspectos relacionados a ele, como as secas, a cristalização da memória e a representação do cangaço.
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Dedé, 91, Dudé, 97, Lizânio, 103, Geraldina e Chico, falecidos. Ela morreu com 95 anos; ele, 113. |
INTRODUÇÃO
Em meio aos relatos ouvidos durante toda a minha vida sobre o cangaço, os crimes cometidos pelos cangaceiros, as atrocidades e a desordem social que esses indivíduos causaram, desenvolvi um fascínio por essas histórias de modo que sempre tive desejo de pesquisar essa temática de forma mais profunda.
Por isso, este trabalho inicialmente deu enfoque à memória do fenômeno cangaço na busca de compreender por que nas regiões onde os grupos e subgrupos de cangaceiros passaram se desenvolveu uma imagem do fenômeno exclusivamente voltada para a figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Situado a 16 km da sua sede Serrolândia, o povoado do Maracujá que segundo Diomedes Pereira dos Reis “ostenta a posição de ser o maior povoado do município”, tem na memória dos seus moradores resquícios muito fortes do fenômeno cangaço. Essa memória mantida ao longo do tempo, ganhou forma e discursos variados sobre os acontecimentos que se desenrolaram muito próximo onde hoje é o povoado. É comum chegar nesse lugar e ao perguntar a um idoso sobre o cangaço, ouvir diversas histórias sobre esses bandidos que assolaram a região na década de 1930.
Nesse período, existiam poucos povoados próximos ao pequeno arraial Serrote, que começa a se desenvolver a partir de 1929. Pequenos lugarejos como é o caso de Itapeipu e Tapiranga eram mais desenvolvidos, com feiras semanais e crescente comércio. Essas localidades foram alvos dos ataques desses bandoleiros que buscavam extorquir os donos das casas comerciais existentes. Nesse ambiente mais “urbanizado” também compravam munições para as possíveis e constantes trocas de tiros com as tropas volantes que estavam ao seu encalço.
Segundo a entrevistada Maria, o bando que passou na fazenda de sua mãe seguiu em direção ao povoado do Tanquinho nome popular do povoado de Tapiranga. Segundo ela, o bando não fez “traquinagens, passou apenas de passagem”. [10] Mas isso não era uma atitude comum desses bandoleiros, na maioria das vezes eles causavam transtornos por onde passavam e muitas pessoas tinham de abandonar suas casas para se entocar no mato.
A presença dos cangaceiros na zona rural de Jacobina causou danos e desordem na vida dos moradores da região, pois os hábitos comuns como ir à feira, trabalhar na roça, tiveram que se modificar. Foram muitas as famílias que deixaram sua casa, sua plantação, seu rebanho para se esconder nos matos com medo do que se ouvia dizer das crueldades cometidas por esses homens. Proteção e asilo eram prioridade mesmo que para isso tivessem que deixar para trás tudo o que tinham.
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Autora do projeto, Karina Sousa. |
AS NOTÍCIAS SE ESPALHAM: OS CANGACEIROS ESTÃO NA ÁREA
Nos anos em que as questões do banditismo ficaram mais “arrochadas” nas vilas e comarca de O Lidador dedicou toda a sua primeira página para falar do pavor vivido pelos moradores da região, com a presença de um dos subgrupos de Lampião, chefiado por Azulão e Arvoredo. Foi “dado cabo” desse bando na fazenda Lagão do Limo, uma das muitas que existiam onde hoje é o povoado do Maracujá. A matéria com o tema O Banditismo – Arvoredo e Azulão sicários de Lampião em terras jacobinenses, [5] apresenta o relato de Antônio Carneiro da Silva que segundo o jornal foi salvo milagrosamente da morte, pois estava nas mãos dos piores cangaceiros que a região conheceu.
Jacobina,
Nos dias 3, 4 e 5 do corrente, a cidade de Jacobina viveu momentos de pavor e consternação em face das notícias aqui chegadas de Itapeipu, Serrote e outros lugares vizinho perto desta cidade. onde de passagem o grupo de Azulão e Arvoredo, ora desembestado do de Lampião, praticou uma série de crimes com requisitada e habitual barbaridade. [sic][7]
O jornal chegou a entrevistar um dos sobreviventes que ficou cara a cara com este bando, dando espaço para o subdelegado do arraial de Itapeipu, Antônio Carneiro da Silva, relatar seu encontro com esses bandoleiros e como ele sobreviveu.
CRECOLHENDO VESTÍGIOS DO PASSADO: O ESTUDO DA MEMÓRIA
As histórias sobre o cangaço são contadas não apenas pelos mais velhos da comunidade, pessoas mais novas fazem questão de contar os maus feitos e as crueldades realizadas pelos cangaceiros que por ali passaram segundo o que os seus avós e bisavós lhes tinham contado. As memórias que foram colhidas mostram uma perspectiva da realidade do fenômeno cangaço a partir das lembranças de quem presenciou todos os desajustes sociais que esse movimento causou.
Os entrevistados fizeram questão de contar sobre os fatos ocorridos na fatídica tarde de 15 de outubro de 1933. Data marcada na memória por causa da morte dos integrantes de um dos subgrupos de cangaceiros, liderado por Azulão, considerado um dos mais cruéis que passaram por essas bandas. Azulão, sua mulher Maria, Canjica e Zabelê foram mortos na Lagoa do Limo, próximo do povoado do Maracujá. Esse episódio fez parte de todas as rodas de prosa que tive com os idosos da comunidade. Alguns ainda se arriscam a lembrar dos nomes dos indivíduos e contar com detalhes esse acontecimento.
“Alguns deles encontraram na tal Lagoa do Limo com a força volante. Aí agora foi trocar tiro. Eu lembro bem de três, esses três eu sei, um tratava Azulão, outro Maria Bonita (na verdade é Maria mulher de Azulão) e o outro Zabelê. Esses três mataram e os outro fugiram, escapou e o povo conversa que eles (A força volante) mataram e tiraram as cabeça e deixou os corpos pro urubu comer.[17] “[sic]
Durante esses relatos muitas questões ficaram evidentes, como a mistura de diferentes movimentos. A passagem da Coluna Prestes[18]por Mairi, em 26 de junho de 1926, tem se embaralhado com o cangaço. Dois dos idosos entrevistados confundiram a passagem da Coluna Prestes por Mairi com a ação dos bandoleiros.
Uma das entrevistadas chegou a dizer que os homens da Coluna Prestes também eram cangaceiros. Percebi que as representações dos fatos estão relacionadas ao medo daquilo que causou instabilidade social. Em ambos os casos, tanto na passagem da Coluna Prestes como no fenômeno cangaço, as vidas dos entrevistados foram bruscamente alteradas pelo medo gerado pelo que se ouvia dizer de seus integrantes.
Ao perguntarmos sobre o cangaço ao entrevistado Lizânio ele nos disse:
“Esse negócio de Lampião e os bandidos, era um bandidismo que havia, os primeiro bloco eu acho que era chamado revoltosos (nome dado a Coluna Prestes) tinha esse bloco dos revoltosos no ano de eu era menino, dormimos no mato também.[19] [sic]”
Fica evidente o impacto para os entrevistados que tiveram de deixar seu pedacinho de terra, sua casinha, para se “entocar” nos matos como se fossem animais amedrontados. A fim de preservar a vida, em face do que se ouvia falar dos cangaceiros, as pessoas tiveram que passar noites e noites entocadas na caatinga.
Conforme relatos colhidos, os “rebeldes” que marcaram os anos finais da chamada República Velha, em oposição às oligarquias regionais e os movimentos patrióticos também causaram muita instabilidade, medo e mudança na vida daqueles que viviam em regiões mais afastadas das áreas urbanas. Afinal, era no ambiente rural e isolado que os grupos de bandoleiros procuravam e encontravam um campo fácil para extorquir, torturar e matar aqueles que se opusessem as suas vontades.
“O povo tinha medo, eu mesmo dormi no mato muito tempo, que dizer muitas noites. Assombrava assim e saia. O povo dizia tão aí, tão perto. Aí o povo num ficava em casa, não. Ia dormi no mato. Chegava lá, não acendia fogo, não, só um foguinho baixinho.”[20]
Por meio desses relatos podemos compreender que o medo é uma representação muito forte na memória desses idosos. Uns ainda temem em falar desse assunto, como se houvesse possibilidade de que aqueles indivíduos pudessem vir lhes causar algum mal.
A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA DE LAMPIÃO NA MEMÓRIA COLETIVA
Ao recolher os relatos dos idosos constatei que persiste na memória deles a ideia de sempre associar a figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aos demais integrantes do bando e seus subgrupos. Para os idosos, todo cangaceiro que passou pela região era Lampião. Os relatos colhidos mostram quase sempre a figura do “rei do cangaço” como responsável e líder das desordens ocorridas, ainda que ele não tenha passado pelo território delimitado pela pesquisa. A primeira observação que fiz é que quando se fala na temática do cangaço na memória coletiva dos idosos do povoado do Maracujá é que esse fenômeno se reduz a Virgulino Ferreira da Silva.
Em entrevista com Geraldina Alves da Silva, moradora do povoado do Maracujá, percebi o medo e o efeito que a palavra cangaço provoca naqueles que ainda se lembra do período de instabilidade vivenciado na década de 1930.
“Quem é que não tinha medo, porque esses diabos saíram no mundo e ninguém sabia. Quando pegou andando nas fazendas, que eles andava nas fazendas, caçando dinheiro pra roubar, aquele lote de satanás. E era um bando, não era pouco não, era uns bicho, era uns bicho de natureza de cobra. Avimaria não gosto nem de me lembrar, não gosto de lembrar não, senão eu não durmo de noite.[4] [sic]”
A representação do cangaço e dos cangaceiros na memória coletiva se formou de acordo com as noticias que circulavam sobre as práticas de Lampião e seu bando. O que se divulgava pelos jornais era que por onde ele e seu bando passava ficava um rastro de sangue e medo. O fato é que o jornal teve um papel muito importante na produção de uma imagem do cangaço ancorado na figura de Virgulino Ferreira da Silva.
AS HISTÓRIAS, AS CRENÇAS E A MEMÓRIA DO CANGAÇO
Ao redor de uma fogueira ou ao pé do fogão a lenha é comum se ouvir histórias do cangaço. Certos relatos são contados com características sobrenaturais. Reforçando o imaginário simbólico e místico em torno desses cangaceiros e das pessoas que cruzaram seu caminho. É comum idosos relatarem casos que fogem à lógica do possível. Mas são essas lembranças que marcam a memória dos idosos do povoado do Maracujá e que faziam parte do mundo social deles. Acreditar em forças que vão além da capacidade humana fazia parte da realidade desses indivíduos e dos próprios cangaceiros que, segundo relatos, costumavam fazer rituais de proteção. Essas práticas, segundo suas crenças, os protegiam de emboscadas e de serem mortos.
Dois episódios se tornam repetitivos nos relatos recolhidos nessa pesquisa. Um é a morte de um fazendeiro chamado Mariano e seu filho, assassinados a tiro pelo bando de Azulão. O outro é o tiroteio que aconteceu na Lagoa do Limo, onde Azulão e parte de seu bando foram mortos pela volante de Mairi. Tratam-se de acontecimentos que tiveram grande repercussão na região. As notícias se espalharam no meio do povo. Nas feiras, nas bodegas, em cada canto desse sertão.
As lembranças desses fatos são parecidas em todas as entrevistas, o que significa que fazem parte da memória social do grupo, das relações sociais no tempo em que eram mais próximas, onde mesmo morando léguas de distância uns dos outros, os indivíduos mantinham laços de afeto e amizades que transbordavam os limites territoriais. Essa aproximação do grupo social desenvolve, segundo Bosi, uma visão consagrada dos acontecimentos.
Um dos aspectos mais instigante do tema é o da construção social da memória. Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar esquemas coerente de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros “universo de discurso”, “universos de significados”, que dão ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos.[1]
Identifiquei lembranças diferenciadas dos fatos no caso dos assassinatos do fazendeiro Mariano e de seu filho. Geraldina Alves da Silva fez questão de relatar esse ocorrido, acrescentando crenças e superstições do imaginário do sertanejo, durante entrevista concedida.
“Quando os diabos atiraram no filho, o pai veio correndo e eles também atiraram no pai. Depois disso o povo chamou um curado que tinha por lá e o homem fez uma cruz com o pai e o filho para atrasar a viagem dos satanás. Depois disso eles não conseguiram sair daquela capueira[2], rodava, rodava e só ficava no mermo lugar. É tanto que um deles falou: a morte daqueles homens nos prejudicô. E muito.[3] “[sic]
Em outra entrevista, dessa vez com Francisco Lomes do Nascimento, ele também apresenta um depoimento parecido em relação à questão do imaginário místico que fazia parte do modo de viver daqueles indivíduos.
“É interessante que quando eles matavam um animal pra comer nunca comia a parte de trais do animal. Eles não gostavam não. Porque eles acreditavam que se comesse a parte traseira do animal, eles ia se atrasar na viagem e os macacos[4] iam pegar eles.[5] “[sic] Nos depoimentos colhidos pude observar diversas vezes a expressão de crenças e fé em relação à figura de Lampião. É comum ouvir dizer que ele tinha seus santos e eram suas rezas que o protegiam nas batalhas contra as tropas volantes. No popular e no meio das rodas de conversas, as pessoas comentam que sempre que Virgulino saia para um confronto em alguma cidade ele ia fazer suas orações se encontrava com um padre, ou curandeiro, para que seu corpo fosse fechado, daí nem uma bala o atingia.
Há quem diga nesses relatos populares, que Lampião morreu por que na noite anterior ele havia se deitado com Maria Bonita, coisa que ele não poderia fazer por que abriria seu corpo. Por isso ele foi atingido por bala e morreu. Essas histórias populares em relação aos cangaceiros fazem parte do discurso e da memória das pessoas e ganham versões diversas.
As histórias e crenças se tornam um escudo protetor que desenvolve uma imagem de cangaço firmada numa ideia voltada para as forças sobrenaturais, para um pensamento mítico e simbólico. Isso não se dá apenas com pessoas que estão fora do cangaço, o próprio cangaceiro carrega em seu corpo patuás, símbolos de proteção e dessa forma que os cangaceiros ficam revestidos em uma simbologia, em superstições.
Esses indivíduos criavam a ideia de que transitavam entre homens carnais e seres com capacidades sobrenaturais. A mitificação da figura dos cangaceiros ainda comove e causa pavor naqueles que vivenciaram o cangaço na década de 1930. Deste modo, pude compreender o mundo sertanejo, o universo do próprio cangaço e como as pessoas visualizavam esse fenômeno. É importante notar que todas as representações passam a fazer parte da cultura popular regional, pois o cangaço faz parte da história e da vida dos moradores do atual Maracujá e das regiões circunvizinhas.
Compreendo que a temática do cangaço não é um assunto defasado e esgotado. Na perspectiva de um estudo da memória, percebi que essa temática ainda pode ser muito explorada uma vez que apresenta variedades de informações que não podem ser desprezadas. Compreender esse fenômeno pela memória possibilita outras perspectivas e novas visões sobre o tema, que perdeu, ao longo dos anos, espaço na área acadêmica.
OBS: Matéria editada. Veja na íntegra acessando http://www.meussertoes.com.br/tag/bahia/
Fonte: http://www.meussertoes.com.br
Por KARINA DE SOUSA SILVA