Por Marcelo Müller – Médico-veterinário com mestrado em Pesquisa Clínica, especializado em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais, bem-estar animal e atendimento domiciliar.
Nem toda dor emite um som. Muitas vezes, ela se revela no olhar distante do pet, na relutância em subir no sofá, na mudança de rotina que passa despercebida. Em meus atendimentos domiciliares, percebo que a dor costuma ser confundida com idade, preguiça ou personalidade. Mas, em muitos casos, o animal está sofrendo — em silêncio.
Cães e gatos são especialistas em mascarar dor. É um traço evolutivo: esconder sinais de fraqueza garantia sobrevivência na natureza. Hoje, no entanto, esse instinto dificulta diagnósticos e atrasa tratamentos, comprometendo a qualidade de vida dos pets.
Ignorar ou banalizar esses sinais é mais do que um equívoco clínico. É uma falha ética diante de seres que sentem dor e sofrimento emocional — e têm o direito de viver sem isso.
A ciência é clara: cães e gatos são seres sencientes. O artigo “Pain in Pets: Beyond Physiology” (Downing & Della Rocca, 2023) reforça que os pets não apenas percebem a dor, mas também a vivenciam emocionalmente. Isso torna o sofrimento silencioso ainda mais cruel.
A World Small Animal Veterinary Association (WSAVA) e a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) defendem que dor é uma ameaça direta ao bem-estar animal e precisa ser reconhecida, avaliada e tratada com rigor científico.
Durante meus atendimentos, encontro tutores bem-intencionados que desconhecem os sinais de dor crônica. Muitos desses comportamentos, infelizmente, são normalizados:
Comportamentais
Redução da atividade
Relutância para pular, correr ou brincar
Agressividade súbita ou apatia
Mudança no padrão de sono ou alimentação
Físicos
Lambedura excessiva de partes do corpo
Rigidez ao levantar
Vocalizações atípicas (suspiros, gemidos)
Postura encurvada, cabeça baixa
Em gatos (sinais mais sutis)
Falta de grooming
Isolamento ou troca de local de descanso
Alterações no uso da caixa de areia
Ignorar esses sinais não só prolonga o sofrimento como pode agravar quadros clínicos.
A ausência de diagnóstico precoce impede o tratamento efetivo de inúmeras condições. Entre as mais comuns que envolvem dor silenciosa estão:
Osteoartrite e displasia coxofemoral
Doenças dentárias (periodontite, fraturas, reabsorção felina)
Pancreatite, infecções urinárias, doenças gastrointestinais
Cânceres em fase inicial
Quanto antes a dor é identificada, mais efetivo é o tratamento — e maior é a chance de devolver conforto e bem-estar ao animal.
No atendimento domiciliar, o pet mostra quem realmente é — sem o estresse da clínica, sem disfarces. Observar o animal no próprio ambiente revela fatores ambientais que agravam ou perpetuam a dor.
Vantagens do atendimento em casa:
✔ Observação do comportamento natural
✔ Avaliação do ambiente (pisos escorregadios, escadas, acessos)
✔ Redução do estresse e da ansiedade
✔ Personalização do plano de manejo da dor
Essa abordagem amplia a capacidade diagnóstica e aproxima o veterinário da realidade vivida pelo pet e sua família.
Conhecer as predisposições genéticas ajuda na prevenção e vigilância precoce:
Cães
Dachshund, Basset Hound: hérnia de disco
Labrador, Golden, Pastor Alemão: displasias, osteoartrite
Rottweiler: risco elevado de osteossarcoma
Gatos
Persa, Maine Coon: cardiomiopatia, artrose
Siamês: reabsorção dental dolorosa
Se não tratada, a dor pode se perpetuar mesmo após a cura da causa inicial. Isso ocorre devido à sensibilização central: o sistema nervoso passa a amplificar qualquer estímulo como se fosse dor. É a chamada “memória da dor”.
Ciclo da dor crônica
Dor aguda → 2. Adaptação → 3. Cronificação → 4. Sensibilização
Nesse ponto, o animal pode desenvolver compulsões, ansiedade, depressão e até agressividade reativa.
Tratar dor crônica exige uma combinação de estratégias:
Farmacologia personalizada
Analgésicos específicos
Adjuvantes neurológicos (gabapentina, amitriptilina)
Nutraceuticos
Ajustes no ambiente
Tapetes antiderrapantes
Camas ortopédicas
Rampas de acesso
Fisioterapia e reabilitação
Exercícios controlados
Acupuntura veterinária
Massagem terapêutica
Nutrição direcionada
Controle de peso
Dietas anti-inflamatórias
Suplementação articular
Você, tutor, é o primeiro a perceber que algo está errado. Sua observação é a base de um diagnóstico precoce e assertivo.
O que você pode fazer:
Documentar comportamentos incomuns
Filmar sinais suspeitos
Evitar automedicação
Conversar abertamente com o veterinário
Participar ativamente do plano de cuidado
Nenhum pet precisa envelhecer sofrendo. Cães e gatos merecem envelhecer com dignidade, conforto e bem-estar. Cada hesitação, cada mudança de comportamento, cada olhar distante é uma chance de agir — de aliviar, de cuidar, de amar.
Na medicina veterinária moderna, identificar a dor não é apenas um ato técnico. É um compromisso com a vida que sente. A dor invisível só permanece invisível quando escolhemos não enxergar.
Marcelo Müller é médico-veterinário com mestrado em Pesquisa Clínica, especializado em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais, bem-estar animal e atendimento veterinário domiciliar. Atua na promoção da saúde física, emocional e comportamental dos pets, com base nos princípios da medicina veterinária contemporânea e do reconhecimento da senciência animal.
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PRISCILA GONZALEZ NAVIA PIRES DA SILVA
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