A casa de madeira coberta por lona e palha representava a maior conquista da dona de casa Eidi Rodrigues de Lima, de 36 anos, e do companheiro, o produtor rural Romildo Schmidt, de 39.
O casal morava no Assentamento Galo Velho, na zona rural de Machadinho D'Oeste, em Rondônia, município a pouco mais de 350 quilômetros da capital Porto Velho.
Eidi e Romildo viviam na região havia três anos. Eles construíram a casa logo após comprarem o terreno. Era a primeira residência própria deles, que anteriormente moravam em um sítio no município de Vale do Anari, Rondônia, onde prestavam serviços rurais.
No assentamento, o casal se mudou para a residência de quatro cômodos — dois quartos, cozinha e sala; o banheiro ficava na área externa — com as três filhas.
As mais velhas, atualmente com 19 e 18 anos, são frutos de um relacionamento anterior de Eidi. A caçula, hoje com 13 anos, é a única filha da dona de casa com o marido.
O casal costumava dizer que estava feliz morando ali com a família. O assentamento é marcado por conflitos agrários, porém, Eidi e Romildo não tinham problemas com a vizinhança. A maior preocupação deles era com as queimadas feitas na região, principalmente durante o período de estiagem.
Nos assentamentos da região rural de Machadinho D'Oeste, conforme pessoas que vivem no local, é comum que pequenos produtores coloquem fogo no mato para fazer renovação do pasto, ampliar áreas de criação ou para outras culturas agrícolas.
Desde que chegaram ao assentamento, Eidi e Romildo sempre temeram que as chamas pudessem atingir a propriedade deles. "Todo ano tinha essa questão de fogo, usado na região para limpar os lotes. Mas minha mãe e meu padrasto nunca haviam sido afetados com isso", relatou Jeigislaine Rodrigues de Carvalho, de 18 anos, a segunda filha de Eidi.
As mortes de Eidi e Romildo são exemplos trágicos das consequências das queimadas florestais no Brasil. Em 2019, foram registrados os maiores números dos últimos sete anos.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram registrados, até a terça-feira 27, 82.200 pontos de incêndio pelo país — o número representa 80% a mais que os registros do ano passado.
Rondônia é o quarto estado com mais registros de queimadas no Brasil. De janeiro até a segunda-feira 26, foram 6.441 focos de incêndio, segundo o Inpe.
A lista de estados brasileiros com mais incêndios neste ano é liderada por Mato Grosso (15.400), Pará (10.700) e Amazonas (7.600). Tocantins teve registros semelhantes a Rondônia, foram 6.436. Os cinco fazem parte da Amazônia Legal - o conjunto de estados com áreas de Floresta Amazônica.
A Nasa apontou, na semana passada, que 2019 é o pior ano de queimadas na Amazônia brasileira desde 2010. Imagens da agência espacial americana mostram uma densa camada de fumaça sobre os estados de Rondônia e Amazonas.
Rondônia foi um dos estados que receberam ajuda federal para atuar no combate aos incêndios.
Romildo conheceu Eidi pouco após ela chegar a Rondônia. A dona de casa morava em Araputanga, no interior do Mato Grosso, quando se separou do primeiro marido. Com as duas filhas pequenas, se mudou para o estado vizinho, para recomeçar a vida. "Ela escolheu vir para Rondônia porque temos muitos parentes por aqui", contou Jeigislaine.
Parentes contam que Eidi e Romildo se apaixonaram e começaram o relacionamento. Logo nasceu a primeira e única filha do casal. Com a família, se mudaram para o sítio em que o homem trabalhava como vaqueiro.
Desde que começaram a namorar, Eidi e Romildo planejavam comprar uma área para que pudessem cultivar alimentos e criar animais. Por uma década, juntaram dinheiro e conseguiram adquirir a propriedade na zona rural de Machadinho D'Oeste. Para eles, era apenas o começo do sonho de serem donos da própria terra.
Na propriedade rural, o casal tinha pequenas plantações e criavam porcos e galinhas. O casal queria aumentar a casa, por isso juntou dinheiro para começar a comprar materiais.
Um dos objetivos era trocar a cobertura de palha e lona. "Eles tinham comprado muitas telhas e ripas de madeira recentemente", relembrou Jeigislaine.
Vizinhos disseram à Polícia Civil que Eidi e Romildo sempre evitaram sair durante o período em que as queimadas eram mais constantes. Eles não queriam ficar longe para tentar proteger a casa de um possível incêndio.
Na zona rural em que está localizado o assentamento, as queimadas frequentes motivam os moradores a adotarem medidas para preservar seus patrimônios.
Os entornos de muitas propriedades possuem aceiros — técnica de retirada de vegetação para evitar propagação do fogo.
"O pessoal faz mutirões para apagar incêndios, usam água, deixam o entorno da propriedade somente com terra, para que o fogo não se alastre. Nesse período de incêndios, eles tentam de tudo para não perder o pouco que têm", relata o delegado Celso André Kondageski, da Delegacia de Machadinho D'Oeste.
De acordo com os relatos de testemunhas, o fogo que atingiu a região em que Eidi e Romildo moravam começou por volta das 13 horas, no dia 13 de agosto. O assentamento, assim como toda a zona rural da região, está localizado em uma área desmatada da Floresta Amazônica. Em razão disso, as chamas costumam propagar com mais rapidez.
No horário, o vento estava forte e fez com que incêndio avançasse ainda mais rápido. Moradores registraram vídeos que mostram a destruição. Nas imagens, é possível ver que o fogo atingiu grande altura e tomou conta da área.
Na propriedade rural da família, Eidi e Romildo logo se preocuparam com as chamas. A filha mais nova estava na escola. Testemunhas contaram que a primeira preocupação do casal foi retirar as madeiras e as telhas que haviam comprado recentemente.
"Eu não estava por perto, mas vizinhos me contaram que eles quiseram preservar o que tinham comprado e colocaram em uma área afastada da mata, para que não queimasse também", contou Jeigislaine, que mora em um sítio a cerca de 4 quilômetros da casa da mãe.
"Alguém deve ter aproveitado que estavam queimando para também colocar fogo, achando que nenhuma propriedade seria atingida. Esse outro incêndio piorou ainda mais a situação", disse uma testemunha, que não será identificada.
Conforme as apurações iniciais, o segundo incêndio inesperado surpreendeu Eidi e Romildo, que até então planejavam sair da propriedade pela frente, em direção contrária ao fogo. "Eles não tinham mais para onde fugir, porque rapidamente tudo foi tomado pelo fogo", narrou Jeigislaine, com base em relatos de vizinhos da mãe.
O incêndio consumiu, segundo testemunhas, cerca de 43 hectares da região. A propriedade de Eidi e Romildo foi completamente destruída, assim como outros dois sítios da região. Diversos animais também foram atingidos pelas chamas e morreram carbonizados.
"O fogo só parou depois que atingiu toda a mata da região. Estava muito forte. Acho que até os bombeiros teriam dificuldades para controlar. As chamas pararam sozinhas, quando acabaram as partes de mata daquela área", completa o morador.
Segundo a testemunha, os bombeiros foram à região somente no dia seguinte, quando foram informados sobre as proporções do incêndio. No local, fizeram trabalho de rescaldo após a queimada.
A BBC News Brasil entrou em contato com o Corpo de Bombeiros de Rondônia para confirmar se eles foram ao local na data do incêndio ou se receberam algum chamado sobre o caso. Porém, a instituição não respondeu até a conclusão desta reportagem.
No fim da tarde do dia 14, os corpos de Eidi e de Romildo foram encontrados carbonizados, na parte externa da propriedade rural deles. Desde a noite do dia anterior, eles eram considerados desaparecidos.
Os corpos de Eidi e de Romildo estavam juntos, a cerca de 100 metros de distância da casa deles. Para alguns, eles morreram abraçados. Porém, Jeigislaine acredita que o padrasto estava carregando a companheira.
"Acho que minha mãe tinha passado mal, por ter inalado muita fumaça, e ficou muito fraca. Meu padrasto, então, deve ter carregado ela para tentar sair dali, mas os dois acabaram morrendo", disse a jovem.
A principal suspeita é de que a dona de casa e o marido tenham morrido por inalação de monóxido de carbono. Em seguida, com o avanço do fogo, foram carbonizados. "Mas ainda é preciso esperar os resultados das perícias para que possamos esclarecer todo o contexto", disse o delegado Kondageski.
Jeigislaine relatou que ainda tem dificuldades para aceitar que a mãe e o padrasto morreram. "A gente não consegue entender. Não caiu a ficha. Tá difícil acreditar nisso tudo que aconteceu. Eu não quis ver os corpos carbonizados, nem minhas irmãs viram, porque era uma imagem muito pesada para a gente." Eidi e Romildo foram enterrados no dia seguinte à data em que foram encontrados.
INVESTIGAÇÕES
A Polícia Civil de Machadinho D'Oeste instaurou inquérito para apurar o caso. Testemunhas já foram ouvidas pelo delegado Kondageski. Ele aguarda as conclusões das perícias para auxiliar nas apurações. O principal objetivo é descobrir a origem do fogo na região e quantas pessoas incendiaram aquela área do assentamento na tarde do dia 13.
"Os responsáveis pelo fogo vão responder pelo incêndio, porque é crime ambiental, e podem responder também por homicídio doloso (quando há intenção de matar), porque uma pessoa que coloca fogo em uma área dessas sabe dos riscos que existem, inclusive o de matar alguém", pontuou o delegado.
As apurações iniciais, segundo o delegado, apontam que o fogo teve início ao ser ateado em uma região de pastagem, logo se alastrou e atingiu as propriedades. "Mas ainda estamos investigando", frisou.
Para o delegado, a morte do casal é um importante alerta sobre as queimadas. "Essa é a pior das consequências. Esses incêndios geram perdas ambientais e materiais, além de serem considerados crimes ambientais. É uma atitude imprudente, que vem sendo adotada há muito tempo."
A família de Heidi e Romildo quer justiça. "Quem fez isso tem de pagar, porque essa atitude irresponsável acabou com duas vidas", declarou Jeigislaine.
"É muito triste ver a forma como minha mãe e meu padrasto morreram. Sempre fico vendo fotos deles em meu celular. Está sendo muito difícil", lamentou Jeigislaine.