Nesta versão contemporânea da série de livros de Ann M. Martinn, disponível na Netflix, cinco amigas se lançam no mundo dos negócios com uma agência de babás. O quinteto é formado por Krist, Mary-Anne, Claudia, Stacey e Dawn. Cada episódio da série infanto-juvenil é narrado por uma das garotas e na visão delas é construído um enredo sobre assuntos delicados que são tratados de forma super educativa.
Os temas vão desde as complicações em mentir para os pais, a descoberta do amor, a convivência com problemas de saúde, como diabetes, pais divorciados e curiosidades do universo LGBTQIA+. As histórias envolvendo essa comunidade são abordadas com tamanha sabedoria e sensibilidade que é de se ficar admirado.
Começando pela personagem Dawn, que entra lá pelo quarto episódio da primeira temporada e tem os pais divorciados. Seu pai é homossexual e tem um namorado e isso é tratado de maneira muito natural. Outra situação se passa durante as férias de primavera de Stacy e a Mary-Ann, quando elas saem da cidade para um trabalho e acabam conhecendo um menino que timidamente revela ter atração por outro menino do acampamento de teatro, do qual faz parte. Como bem se sabe, é nessa idade, da saída da infância, para o início da puberdade, que os primeiros interesses amorosos começam a se manifestar. O que foi retratado com muita naturalidade pelas meninas que compreenderam a situação e a pureza do sentimento revelado pelo menino.
E agora, a parte mais legal da primeira temporada: em um episódio Mary-Ann é contratada para cuidar de uma menina chamada Bailey. Durante o trabalho ela entende que a criança é uma menina trans. A protagonista aceita muito tranquilamente a situação e, mais do que isso, em um certo momento Bailey acaba adoecendo e Mary-Ann precisa levá-la ao hospital. No local, a equipe não tem o devido preparo para lidar com transgêneros e trata a criança como um menino. A babá não se conforma e não se cala, confronta os profissionais da saúde e dá uma lição de respeito e empatia. O mais interessante disso tudo é que a criança que interpreta a Bailey na série, a Kai Shappley, de apenas 9 anos, é de fato transgênero.
Segundo as entrevistas concedidas pela Kimberly, mãe de Kai, a história da personagem tem muito a ver com a história real da menina. Elas descobriram muito cedo que ela era transexual. Quando Kai tinha por volta de 3 anos, só se identificava com símbolos do universo feminino e falava várias vezes ao dia que era uma menina. A mãe alega que muitas pessoas apontavam que Kai fosse um menino gay e apenas uma amiga de Kimberly falou sobre a possibilidade dela ser transgênero. A mãe da criança passou a consultar especialistas para acompanhá-la no processo de transição que iniciou quando ela ainda tinha 4 anos. E, desde então, Kai e sua mãe têm lutado contra o preconceito e a transfobia.
Assim como Kai, a maioria das pessoas trans, se percebem assim ainda na infância, porém, mesmo sendo a fase mais importante da nossa construção afetiva e subjetiva, também é o período que, por vezes, somos mais negligenciadas(os). No geral, é comum observarmos crianças sendo impedidas, silenciadas, sempre que tentam emitir alguma opinião ou expressar seus sentimentos. Esse comportamento adulto quando normalizado, faz com que essas crianças se sintam ridicularizadas e passem a acreditar que suas opiniões e percepções do mundo não valem nada.
Quando falamos então de autopercepção infantil para as questões de gênero, a situação fica ainda mais difícil. A opinião infantil, sobre qualquer assunto é desqualificada, imagine quando uma criança declara que se percebe diferente do gênero de nascimento? Basta conversarmos com algumas pessoas transgênero e veremos quantas delas irão relatar que tentaram falar sobre isso com os pais e cuidadores, mas só conseguiram ser ouvidas bem mais tarde. A maioria delas não receberam crédito ou foram levadas a profissionais que também não entendiam sobre essa transição e que classificavam isso apenas como uma questão de sexualidade.
No entanto, a história vai muito além da falta de informação e preconceito da nossa sociedade. A verdade é que crianças trans existem, sempre existiram e precisam ser vistas e acolhidas como são, e negá-las é uma forma de violência. Crianças trans não estão confusas ou querendo chamar atenção, apenas não se sentem confortáveis nos seus corpos. E por conta desse desconforto, podem vir a se isolarem, ficarem mais inibidas e até desenvolverem uma depressão.
Quando falamos de crianças trans, falamos de crianças ainda mais vulneráveis por todo o estigma que carregam e é por isso que devemos reforçar a divulgação de informações sobre o tema, clareando e trazendo consciência para a população, bem como, protegê-las e assegurar seus direitos. Por mais óbvio que pareça, é sempre bom relembrar que as crianças transgênero têm direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
Bem se sabe que muitos pais e familiares negam a transexualidade dos filhos, o que pode deixar traumas que vão acompanhá-los por toda a vida. Nesses casos, a autoridade parental tem limites, ela não pode infringir os direitos da criança. Qualquer tentativa de submissão da criança/adolescente a terapias de “reversão” ou “cura” pode ser penalizada visto que esse tipo de terapia é proibida pelo Conselho de Psicologia e também foi declarada proibida pelo STF em 2019 (RCL 31818).
As crianças trans também têm direito de alterar seu nome e seu gênero no seu registro civil, se assim desejarem. Isso pode ser feito por meio de ação judicial, sob a representação dos pais, onde a criança será ouvida e acompanhada por profissionais qualificados, para que o seu melhor interesse seja atendido. Também é possível inserir apenas o nome social no documento, mas essa alternativa acaba por expor a transgeneridade da criança.
É importante esclarecer, ainda, que as crianças e adolescentes trans menores de 16 anos não fazem cirurgias nem tomam hormônios. Elas passam apenas pela transição social e somente depois podem escolher se querem ou não realizar algum tipo de terapia hormonal ou cirurgia. Nesse caso, quando acontece a chegada da puberdade, com o devido acompanhamento multidisciplinar e dos pais, poderá ser feito o uso de supressores hormonais para retardar os efeitos, proporcionando mais tempo para seu desenvolvimento, e facilitando a decisão que será tomada depois, de parar a supressão ou iniciar o uso de hormônios.
Por fim, vale a pena frisar que a falta de familiaridade e de conhecimento sobre o tema é o que mais afeta a forma como muitos pais e a própria sociedade reage quando um filho se percebe como transsexual, principalmente quando ainda está em desenvolvimento. Mas saiba que acolher significa, antes de tudo, ouvir e respeitar aquilo que seu filho traz sobre como ele se percebe, se identifica e quer ser tratado. E a verdade é que, a falta de aceitação dos familiares não vai mudar a identidade de gênero do filho, mas vai gerar muito mais sofrimento e impedir que ele receba o afeto e o apoio muito necessário para que ele possa ter segurança de ser quem é.
Por isso, procurar compreender com maior lucidez sobre identidade de gênero e transsexualidade é fundamental para todos nós. Nosso papel enquanto pais e cidadãos na sociedade, não é o de tentar reverter ou controlar a identidade das nossas crianças, e sim estar ao lado delas - apoiando, protegendo e garantindo sua liberdade de existir, indiferente das escolhas de gênero que façam.
*Danielle Corrêa é advogada desde 2007, com pós-graduação em Direito de Família e Sucessões. Membro da OAB-SP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
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